sexta-feira, 23 de março de 2007



COMÉDIA DA VIDA NÃO PRIVADA

Há algum tempo já o fenômeno dos reallity shows tem tomado boa parte das discussões em relação a TV.
No entanto, a vida alheia parece interessar muito desde sempre. As fofocas por exemplo, são uma velha forma de “investigar” ou “dar uma espiadinha” na vida alheia. As revistas de fofoca sobre a vida dos artistas sempre venderam muito bem. O reallity show parece-me um superlativo do que já existia antes.
Mas, o que afinal, atraí tanto na vida alheia? O Bom dito popular diz que quem cuida muito da vida do outro é porque tem a própria vida em pedaços. Faz muito sentido, mas há outras partes do processo que são valiosas de serem analisadas.
Boa parte do vasculhar a vida alheia é movida pela curiosidade. Em certo ponto, até saudável. Quem nunca teve um professor legal e gostaria de saber como ele é em casa? Ou imaginou como seria um ídolo como amigo ou como pessoa? No entanto, como ensina Freud e Lacan, o Outro é parte de nossa identidade. Adquirimos noções de linguagem, mundo e realidade através do contato com outras pessoas, assim como também lançamos em direção a esse outro nossos desejos e anseios.
Começa cedo: na relação Mãe/ Bebê existe uma relação simbiótica (na qual o bebê não percebe a mãe como um ser diferente). Somente com o desenvolvimento é que gradativamente o bebê vai percebendo que a mãe não está disponível o tempo todo porque surgem interferências (seja do pai, do trabalho da mãe, etc) que frustram o bebê no desejo de estar sempre com a mãe. E isso é muito importante porque o bebê então desloca parte do interesse exclusivo pela mãe para outras pessoas, para o mundo. Em certa proporção, todos nós precisamos do olhar alheio para sabermos se somos bonitos, amados, inteligentes, etc.
Porém atualmente vive-se um tempo no qual a própria pessoa se tornou um item a ser consumido, criando a sociedade de espetáculo como aponta Amparo Caridade, um dos maiores teóricos sobre o assunto. Banalizamos de tal modo as relações humanas que a vida privada, particular e íntima deve ser mostrada sempre aos brilhos para que alguém possa se interessar por nós. Tanto que não raramente a revista Caras expõe em suas páginas a casa da Xuxa, Ronaldinho tomando café ou a lua de mel de algum emergente. No entanto, não nos enganemos: apesar de parecer isso não é intimidade!
No famoso Orkut (pagina na Internet de relacionamentos) há a exposição máxima: mostra-se um rosto sorridente, e enaltece-se no geral as qualidades. Há um desejo enorme de ser reconhecido pelo outro como alguém interessante, bonito e inteligente. Os reallity shows então, acrescentam à formula um item ainda mais interessante do ponto de vista psicanalítico: o desejo de transgredir. Se não é certo beber ou fumar, lá estão os “brothers” (como são chamados os participantes) bebendo e fumando. Se não é correto trair um relacionamento, lá estão eles com outros pares. Se falar palavrão é feio, lá estão eles deixando escapar e realizando o desejo de milhares de expectadores: serem vistos, admirados, invejados e transgredindo. E daí surge a identificação (afinal, os vencedores dos Big Brothers sempre são os mais populares ou que conseguem preencher o espaço dos desejos coletivos) responsável pela grande audiência destes programas. Até mesmo as novelas passam a exibir muito mais cenas do cotidiano (os depoimentos de Páginas da Vida que não me deixem mentir) e de MUITA intimidade.
Alguém poderia propor um Big Brother com nossos políticos, não?
Aliás, nota: o nome do Programa Big Brother é uma alusão ao famoso romance de George Orwell “1984” no qual relata um mundo eternamente vigiado por tele- câmeras fazendo com que todos se submetam à vontade do Ditador Grande Irmão).
De certa forma, a necessidade muito grande de ser reconhecido ou de ser aprovado pelo olhar alheio é um dos responsáveis pela anorexia, bulimia, vigorexia (excesso de exercícios físicos em geral nos homens) que surgem do medo de reprovação ou punição (não há nada pior que o desprezo diz novamente o dito popular!) de um Grande Irmão que se vê erroneamente nos olhos de todos que nos cercam.

José Carlos da Costa
Psicólogo e Psicopatólogo
Rua São Pedro, 263
Jardim São Francisco – Caieiras – Próximo ao Campo São Francisco
Telefones: 11 4605 44 10
11 4445 28 10

Um comentário:

Anônimo disse...

O texto está brilhante. Quando vejo o BBB lembro do Foucault e seu panóptico que é aquela guarita mais alta das prisões onde o vigilante (supereu?) observa todos os prisioneiros.

Nos "Três ensaios" há uma alusão a duas "pulsões" do ser humano. Uma que tem relação com o olhar - que uma professora minha cita como "pulsão escopofílica" - e outra ligada ao saber - que ela cita como "epistemológica". Vou relê-lo e comentar com você mais a respeito.